domingo, 1 de outubro de 2023

Revolta do Gueto de Varsóvia (1943) - Relatos, panfletos e telegramas

 


Há poucas horas, as Divisões SS, armadas com blindados e artilharia, começaram a assassinar a população restante do gueto. O gueto ofereceu resistência feroz e heroica. A Organização Judaica de Luta conduz a defesa, reunindo quase todas as tropas  de luta ao seu redor. Ininterruptamente, soam explosões de canhão e fortes detonações vindas do gueto. Todo o bairro está mergulhado num imenso mar de chamas, provindo de incêndios gigantescos. Por cima da região do massacre circundam aviões. O resultado dessa luta já está previsto desde o início, naturalmente.

Telegrama da ZOB (Organização Judaica de Luta) para Londres

19 de abril de 1943


A vida pertence aa nós! Também nós temos direito a ela! Há que se saber combater por ela! Não há nenhuma mérito em viver quando eles lhe permitem viver! Há um mérito em viver quando eles quere lhe arrancar a vida!

Desperte, povo, e lute por sua vida!

Cada mãe torne-se uma leoa defendendo seus filhotes! Nenhum pai veja tranquilamente a morte de seus filhos! A vergonha de nosso primeiro ato de extermínio não deve ser repetir! Cada casa deve tornar-se um,a fortaleza! Desperte, povo, e lute! No combate pousa a sua salvação! Quem luta por sua vida tem a possibilidade de salvar-se. Elevamo-nos em nome da luta pela vida dos desamparados, aos quais queremos trazer a salvação, a quem queremos despertar para a ação!

De um panfleto ilegal 



O  fogo alastrava...com incrível violência. As ruas do gueto estavam impregnadas de fumaça e acre. Ficou claro que os alemães usavam a terrível tática de acabar com o gueto enfumaçando-o. Como perceberam que a resistência dos combatentes judeus não podia ser quebrada por armas, resolveram destruir as pessoas pelo fogo. Dentro das casas, milhares de mulheres e crianças queimavam em vida. Escutavam-se terríveis gritos de socrro vindos das casas em chamas. Viam-se, em muitas janelas, pessoas em chamas - como tochas vivas.

Relato da ZOB, numero 5




Não era raro os judeus permanecerem nas casas incendiadas até não aguentarem mais o calor. Por medo da morte nas chamas, preferiam saltar dos andares mais altos, após terem lançado colchões e estofados das casas para a rua. Com os ossos quebrados, ainda tentavam se arrastar pelas ruas em direção a outros quarteirões que ainda não estavam totalmente em chamas

Relato de Stroop.



Já estávamos no oitavo dia de combate pela vida e morte...O número de nossas vítimas, isto é, as vítimas dos fuzilamentos e dos incêndios, nos quais morreram homens, mulheres e crianças, é enorme. Aproximam-se nossos últimos dias. Mas, enquanto pudermos segurar as armas na mão, prestaremos resistência e lutaremos. Rejeitamos o ultimato alemão sobre a capitulação. Comovemos aproximar-se nossos últimos dias, exigimos de vocês: nada esqueçam! Virá o dia em que nosso sangue inocente derramado, será vingado. Corram em auxílio daqueles que puderam escapar do inimigo no ultimo instante, para que eles possam continuar a lutar. 

Relato da ZOB, 26 de abril de 1943




Por baixo das ruínas ardentes, bem longe do dia primaveril, centenas jazíamos numa profundidade de cinco metros, em escuridão total, no chão do abrigo. Nenhum raio da luz do dia podia entrar ali. Somente o relógio nos dizia que o sol se punha lá fora. Toda noite víamos judeus que saiam dos abrigos escuros e abafados à procura de suas famílias e amigos a pelas ruas e víamos, toda noite, que nosso número diminuía. O gueto reduzia-se rapidamente. A fome e a descoberta dos abrigos por patrulhas alemãs foram responsáveis por isso.

Relato de Cywia Lubetkin




Num outro canto estava uma criança de um ano, não chorava e não gemia, certamente não havia mais forças para isso. Bracinhos e perniinhas estavam queimados. Jamais esquecerei seu rostinho, no qual espelhavam-se dores desumanas...Rosto e braços da mãe estavam totalmente queimados, ela não podia segurar a criança.

Relato de P. Elster



Quanto mais a resistência durava, mais duramente atuavam os homens da Waffen-SS, da polícia e do exército que, também em leal fraternidade de armas, executava sua tarefa de forma exemplar. A tarefa ia, frequentemente, desde cedo até altas horas da noite. 

Relato de Stroop



Nossa máxima era: viver e morrer com dignidade!

Nos guetos e nos campos esforçávamos para cumprir essa máxima...

Apesar do imenso terror, da extrema fome e da amarga penúria, cumpríamos está máxima até a morte, como mártires do judaísmo polonês.

Relato do Movimento de Resistência Judeu



A mesma meta nos unia...todos se extremavam na resistência coletiva e em manter a dignidade. Cada um lutava por cada um nesta luta histórica pela vida e morte. Não havia diferenças entre membros dos diversos partidos, quando tratava-se de cumprir seu dever como soldado. Assim foi até o amargo fim...

Relato do Partido Social-Democrata Judeu.


Todas as fotografias foram retiradas do "Relatório Stroop" - um relatório escrito por Jürgen Stroop para Heinrich Himmler sobre a liquidação do Gueto de Varsóvia em maio de 1943.

Transcrição: Daniel Moratori (avidanofront.blogspot.com)

Fonte: SCHOENBERNER, Gerhard. A estrada amarela: a perseguição aos judeus na Europa, 1933-1945. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1994, p. 237-253

sábado, 30 de setembro de 2023

Sobre livros e valores inflacionados




Jean-Claude Pressac escreveu o livro intitulado "Os crematórios de Auschwitz: a maquinaria do assinato em massa", no qual analisou detalhadamente a tecnologia e operação das câmeras de gás e crematórios em Auschwitz. Seu trabalho é considerado uma contribuição importante para a historiografia do Holocausto.

Após uma busca de mais de 15 anos, finalmente consegui encontrar a versão em português do livro que buscava (já possuía a versão em alemão). Isso deve ser alto valor de revenda no Brasil, onde algumas cópias chegam a ser vendidas por incríveis R$1.000,00 em sebos. Essa situação parece surreal. 

Recentemente, adquiri outro livro, "Apoiando Hitler" de Robert Gellately, de uma amiga. Também notei que ele está alcançando preços muito altos na internet e em sebos. Infelizmente, essa tendência de supervalorização de itens em sebos no Brasil é uma realidade prejudicial. Estou à procura de mais livros, mas prefiro não mencioná-los aqui para evitar a ampliação dessa valorização exagerada. 😄 

Aqui no Brasil já tudo se inicia com valores muito altos, ainda mais nos livros importantes para estudiosos do período. Um outro exemplo disso é o livro do Raul Hilberg "A destruição dos judeus europeus", que já se inicia com o valores em mais de R$300. Ou seja, fica inacessivel a uma grande parcela da sociedade. Esse é o tipo de livro que vai ser um valor astronômico daqui uns anos.

Alguém também concorda com essa questão sobre a supervalorização desses livros? Ou acha que os preços são "justos".


Estou considerando a ideia de compartilhar recomendações de leitura em meu blog. O blog Holocausto-Doc já oferece ótimas sugestões, e graças a ele, descobri algumas obras notáveis ​​que desconhecia, como "Os Irmãos Bielski" de Peter Duffy (quem não conhece, adquira, é barato, menos de R$15,00).

Mas como meu blog tem um foco mais abrangente, penso em fazer essa lista (até para servir como catalogação dos livros que tenho).


Segue as listas do Holocausto Doc:
https://holocausto-doc.blogspot.com/p/bibliografias.html?m=1




sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Pyotr Chepurenko, testemunha do massacre de Piryatin (Oblast de Poltava - Ucrânia)

Libertação de Poltava em 23 de setembro de 1943.

Pyotr Chepurenko, testemunha do massacre de Piryatin¹

Em 6 de abril de 1942, segundo dia da Páscoa, os alemães assassinaram 1.600 judeus da cidade de Piryatin, no oblast de Poltava. Eram velhos, mulheres e crianças que não podiam ir para o leste.

Os judeus foram conduzidos para fora da cidade pela estrada Greben até a Pirogovskaya Levada, a três quilômetros da cidade. Lá, foram cavados buracos espaçosos. Os judeus foram despojados e os policiais e alemães dividiram seus pertences no local. As pessoas condenadas foram forçadas a entrar na cova, cinco de cada vez, e baleadas com submetralhadoras.

Trezentos moradores de Piryatin foram levados à Pirogovskaya Levada para preencher a cova. Entre eles estava Pyotr Chepurenko. Ele deu as seguintes informações:

Eu os vi matando. Às 5:00 V.M. eles deram a ordem: Até nas covas. Gritos e gemidos vinham das covas. De repente, vi meu vizinho, Ruderman, surgir debaixo do solo. Ele havia sido motorista em uma fábrica de feltro. Seus olhos estavam sangrando e ele gritava: ‘Acabe comigo!’ Alguém atrás dele também gritou. Foi nosso marceneiro Sima quem foi ferido, mas não morto. Os alemães e os policiais começaram a matá-los. Uma mulher assassinada estava aos meus pés. Um menino de cerca de cinco anos rastejou para fora de seu corpo e começou a gritar desesperadamente: ‘Mamãe!’ Isso foi tudo que vi desde que fiquei inconsciente.”

Preparado para publicação por Ilya Ehrenburg

Notas:

¹ Este material foi publicado com algumas alterações sob o título “The Land of Piryatin”, em The War (abril de 1943 a março de 1944), por Ilya Ehrenburg, Moscou, 1944, p. 117-18.

Nota do tradutor: Pyriatyn é uma cidade situada na região central da Ucrânia, no Oblast de Poltava.

Tradução: Daniel Moratori (blog Avidanofront.blogspot.com)

Fonte: EHRENBURG, Ilya; GROSSMAN, Vasily. The Black Book: the Ruthless Murder of Jews by German-fascist Invaders Throughout the Temporarily-occupied Regions of the Soviet Union and In the Death Camps of Poland During the War of 1941-1945. New York (N.Y.): Holocaust library, 1981, p.57.

Esse relato também é encontrado na publicação feita pelo United States Holocaust Memorial Museum (USHMM):

BERENBAUM, Michael; KRAMER, Arnold. The world must know: the history of the Holocaust as told in the United States Holocaust Memorial Museum. 2. ed. Washington, D.C.: United States Holocaust Memorial Museum, 2006.


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Resistência judaica armada em Yarmolitsy - Ucrânia


Ucrânia, janeiro de 1943. Partidários judeus do distrito de Bershad, na região de Vinnitsa, entre eles o comandante do destacamento Tales Yankl. Fonte: Yad Vashen. Número de arquivo 2855/1. Disponível em: https://www.yadvashem.org/yv/ru/education/gallery/resistance.asp. Acesso: 04/09/2023 

Resistência em Yarmolitsy¹

[Em Ostrog, os judeus saudaram seus algozes com rajadas de metralhadoras. Em Proskurovo, o tiroteio durou várias horas. Os judeus mataram três homens da SS e cinco policiais recrutados entre a população local. Vários jovens conseguiram entrar na floresta e escapar.]

Em Yarmolitsy, os judeus resistiram durante dois dias. As armas foram trazidas junto com utensílios domésticos e preparadas com antecedência. Os seguintes acontecimentos ocorreram no acantonamento²: Judeus mataram o primeiro policial que apareceu para selecionar um grupo de vítimas e jogaram seu corpo pela janela. Houve uma troca de tiros durante a qual vários outros policiais foram mortos.

No dia seguinte chegaram caminhões com policiais das áreas próximas. Eles não conseguiram entrar no acantonamento até a noite, quando o suprimento de munição dos judeus acabou. A execução durou três dias; dezesseis policiais foram mortos durante esta resistência, entre eles o chefe da polícia e cinco alemães.

Houve casos de suicídio em outros prédios no acantonamento. Um pai jogou seus dois filhos pela janela e então ele e sua esposa mergulharam juntos para a morte. Uma garota parou na janela e gritou: “Viva o Exército Vermelho! Viva Stálin!"


Informações fornecidas por E. Lantoman

Preparado para publicação por Ilya Ehrenburg.

¹ Este material é intitulado “Resistência” na coleção Murderers of Peoples, vol. II, pp. 128-129 . O manuscrito do The Black Book não indica o nome da pessoa que forneceu essa informação e falta o início do texto.

² Nota explicativa do tradutorAcantonamento é um quartel militar temporário ou semipermanente. O acantonamento serve de base de apoio ou local de abrigo e alimentação da tropa

Tradução: Daniel Moratori (blog Avidanofront.blogspot.com)

Fonte: EHRENBURG, Ilya;  GROSSMAN, Vasily. The Black Book: the Ruthless Murder of Jews by German-fascist Invaders Throughout the Temporarily-occupied Regions of the Soviet Union and In the Death Camps of Poland During the War of 1941-1945. New York (N.Y.): Holocaust library, 1981, p.25-26.


sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Os sobreviventes ocultos nas remotas Florestas de Penyatsky (Oblast de Lvov - Ucrânia)


Operação Lviv-Sandomierz. 13 de julho a 29 de agosto de 1944 Batalha nos arredores de Lvov.

 As Florestas Penyatsky

(O oblast de Lvov)

Havia duas aldeias localizadas nas florestas Penyatsky. Um estava a quatro quilômetros do outro. Na aldeia de Guta, que ficava na região de Penyatsky, havia 120 fazendas; agora não sobrou nenhuma. Trezentos e oitenta poloneses e judeus viviam na aldeia; agora eles estão mortos. Nos dias 22 e 23 de fevereiro a aldeia foi cercada por alemães que jogaram gasolina nas casas e galpões e queimaram a aldeia junto com seus moradores. Na aldeia de Guta Verkhobuzheskaya, apenas duas fazendas foram deixadas de 120. Nenhum dos habitantes sobreviveu. Eu, Matvey Grigorievich Perlin, sou um batedor do Exército Vermelho e acidentalmente encontrei dois abrigos de barro com oitenta judeus não muito longe dessas aldeias. Havia mulheres de 75 anos, rapazes adolescentes, raparigas e crianças, a mais nova das quais tinha três anos.

Fui o primeiro representante do Exército Vermelho que eles viram depois de quase três anos de temor diário por suas vidas, e todos tentaram chegar o mais perto possível de mim, apertar minha mão e dizer uma palavra de saudação. Essas pessoas viveram dezesseis meses nesses buracos nas florestas, escondendo-se da perseguição. Havia mais deles, mas restavam apenas oitenta. Nas suas palavras, não mais de 200 pessoas permaneceram vivas dos quarenta mil judeus das regiões de Brody e Zolochev. Como eles sobreviveram? Eles eram apoiados pelos habitantes das aldeias vizinhas, mas ninguém sabia onde estavam escondidos. Ao saírem da “sua” floresta, cobriram seus rastros com neve borrifada com uma peneira especialmente feita.

Eles tinham alguns rifles e pistolas e nunca perdiam uma oportunidade de diminuir o número de feras fascistas. Eles conversaram apenas em um sussurro durante os três anos inteiros. Não era permitido falar em voz alta nem mesmo nos abrigos de barro. Só quando cheguei eles começaram a cantar, rir e falar em voz alta.

  Fiquei particularmente comovido durante este encontro pela impaciência apaixonada e pela fé firme com que esta gente nos esperava - o Exército Vermelho. Suas canções e poemas, suas conversas e até sonhos transbordavam dessa fé e dessa saudade. Zoya, que tinha três anos, não sabia o que era uma casa e viu o seu primeiro cavalo quando cheguei. Mas quando lhe perguntaram quem deveria vir, ela respondeu: “Batko* Stalin deveria vir, e então iremos todos para casa”.

Uma carta de M. Ferlin.

Preparado para publicação por Ilya Ehrenburg.

*Do ucraniano para “pai” ou “líder”. 

Tradução: Daniel Moratori (blog Avidanofront.blogspot.com)
Fonte: EHRENBURG, Ilya;  GROSSMAN, Vasily. The Black Book: the Ruthless Murder of Jews by German-fascist Invaders Throughout the Temporarily-occupied Regions of the Soviet Union and In the Death Camps of Poland During the War of 1941-1945. New York (N.Y.): Holocaust library, 1981, p.132-133.

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

A visita do Ministro das Relações Exteriores britânico Anthony Eden a Moscou: dezembro de 1941

 

  

Visita do Ministro das Relações Exteriores britânico Anthony Eden (centro, mais a esquerda) a Moscou: dezembro de 1941. Fonte: https://www.prlib.ru/en/node/400766

   Em dezembro de 1941, quando as tropas soviéticas começaram seus contra-ataques que deveriam afastar os alemães dos acessos a Moscou, o britânico Anthony Eden iniciou a longa e tortuosa viagem à capital soviética exigida pelas condições de guerra. Enfraquecido pela gripe, o secretário do Exterior passou quatro dias num contratorpedeiro com destino a Murmansk, preso ao leito a maior parte do tempo. Como a cidade portuária do Ártico estava coberta de neblina quando chegaram no dia 12 de dezembro, a delegação britânica não pôde fazer por ar a parte seguinte da viagem. Pelo contrário, tiveram de enfrentar a perspectiva de uma viagem de dois ou três dias de trem até Moscou. Mas enquanto esperavam no navio, o lado soviético providenciou uma surpresa para Eden.

O secretário do exterior empreendeu a viagem porque as relações entre Stalin e seus liados ocidentais permaneciam tensas, apesar das declarações de amizade pelos dois lados. Desde a visita de lorde Beaverbrooke e de Averell Harriman a Moscou em setembro, o líder soviético tinha continuado a insistir no pedido de entregas mais rápidas dos suprimentos do Lend-Lease (programa de ajuda militar) e de toda sorte de ação militar que pudesse tirar um pouco da pressão sobre suas tropas esgotadas - não importando quantas vezes Churchill e outros lhe lembrassem que a Grã-Bretanha não tinha a menor condição de começar a lutar no continente, muito menos considerar a sugestão desvairada de que deveria enviar tropas para a Rússia.

Havia ainda outra questão por que Stalin pressionava: a necessidade de um acordo sobre as fronteiras no pós-guerra. Para desalento de Churchill e Roosevelt, Stalin insistia na definição dos novos contornos geopolíticos do continente após a derrota final de Hitler. Os exércitos russos mal conseguiam manter suas posições nos arredores de Moscou, mas seu líder já sonhava com uma nova ordem europeia que satisfizesse suas ambições territoriais.

Eden se ofereceu para essa missão a fim de tentar amortecer aquelas expectativas e também para manter tranquilas as relações entre esses dois aliados inquietos. Nem ele nem Churchill sabiam que tipo de recepção deveriam esperar, pois Stalin já tinha demonstrado sua obstinação em mais de uma ocasião, embora em geral adotasse um tom mais brando imediatamente após uma discussão mais dura. Ivan Maisky, o embaixador soviético em Londres que regularmente transmitia as queixas do seu líder, acompanhou Eden na viagem e forneceu a primeira indicação do estado de espírito de Stalin.

Depois de terem atracado em Murmansk, Eden continuou a bordo enquanto Maisky ia à cidade tentar providenciar um trem fortemente protegido. De volta ao seu contratorpedeiro, o embaixador soviético pediu uma reunião privada com Eden, e os dois foram para a cabine do secretário do exterior. Maisky colocou uma bolsa preta sobre a mesa e comunicou a mensagem de Stalin. O líder soviético, disse ele, não queria que Eden e a delegação britânica se sentissem "embaraçados' durante a visita pela controvérsia entre a Grã-Bretanha e a Rússia em torno da taxa de conversão do rublo. Como os americanos, os britânicos protestaram muitas vezes contra uma taxa de câmbio que inflava todas as suas despesas na Rússia. Sem fazer nenhuma concessão nessa questão, Maisky explicou que Stalin estava colocando à disposição de Eden rublos suficientes para que a delegação não tivesse nenhum problema durante a visita. Então, enquanto um atônito Eden observava, o embaixador puxou "pacotes e mais pacotes" de notas que colocou em filas sobre a mesa.

"Fiquei boquiaberto diante de tanta riqueza", lembrou o secretário do exterior. Mas teve a presença de espírito de pedir a Maisky que agradecesse a Stalin pela generosidade e assegurasse que a delegação britânica era capaz do dinheiro na mesa.

Maisky ficou visivelmente desconcertado pela polida recusa de Eden, mas quando o secretário do Exterior não quis mudar de ideai, ele reuniu os pacotes de rublos, os colocou de volta na bolsa preta e trancou-a.

Aquilo era típico Stalin: queria parecer conciliador e amaciar o visitante britânico antes das conversações, mas com um gesto tão ostensivamente generoso que deixou Eden numa posição delicada, não lhe restando alternativa a não ser recusar a oferta. O líder soviético provavelmente não fazia ideia da razão por que seu convidado não podia aceitar o dinheiro, pois no seu mundo ele gratificava ou punia qualquer um de acordo com sua inclinação – e nenhuma outra regra se aplicava

No dia seguinte, 13 de dezembro, Maisky voltou a bordo para dar a Eden a notícia que o Pravda trombeteava: a vitória soviética na Batalha de Moscou. Apesar de saber que a luta estava longe de terminada, o secretário do Exterior ficou feliz. "Isso é maravilhoso! Pela primeira vez, os alemães sofreram um revés."

Na viagem de trem que começou no fim da tarde do mesmo dia, Eden se impressionou com a capacidade dos russos de enfrentar o frio impiedoso que chegava a -26°C à noite. O trem especial era equipado com metralhadoras antiaéreas, montadas em vagões abertos entre os vagões de passageiros, e que eram operadas em turnos de duas horas. "O frio que aqueles homens tinham de suportar quando em movimento a uma velocidade razoável através daquelas temperaturas árticas deve ter sido cruel", observou Eden.

Durante uma das paradas ocasionais, quando desceram para caminhar ao lado dos trilhos, ele perguntou a Maisky: "como o seu povo suporta tanto rio?" O embaixador lhe assegurou que as equipes estavam adequadamente vestidas e acostumadas às temperaturas gélidas, ao que Eden acrescentou: bem, os alemāes não estão acostumados a esse frio".

Quando o trem chegou a Moscou na noite de 15 de dezembro, havia pingentes de gelo pendurados nos vagões e a estação estava mergulhada na escuridão. De repente, as luzes foram acesas no local, durante os 14 minutos em que Molotov saudou o seu colega britânico. O ministro do Exterior soviético informou ansioso que tropas soviéticas tinham acabado de expulsar as tropas alemãs de Klin, a 80 km ao norte de Moscou. Então, as luzes se apagaram de novo, e as pessoas se moveram como sombras através do vapor e da fumaça do trem e do blecaute Continuo da capital para evitar oferecer alvos visíveis aos bombardeiros a alemães. A capital não se sentia tão triunfante quanto a proclamação oficial fizera parecer dois dias antes.

        Se Eden tinha alguma dúvida sobre o impacto da melhora da situação militar no estado de espirito de Stalin, ela se evaporou quando os dois homens se sentaram para a primeira reunião na noite seguinte. Já de início, o líder soviético focalizou as suas ambições territoriais paralelamente às outras ideias para o período do pós-guerra, por mais prematura que parecesse aquela discussão. Stalin não iria permitir que Eden fugisse dos temas, limitando a discussão à situação corrente. O primeiro sucesso real do seu exército - conter os alemães nas fronteiras de Moscou e empurrá-los para trás - só fortalecia a decisão de pressionar o hóspede inglês pelos compromissos que ele desejava. Stalin tentaria parecer generoso oferecendo pacotes de rublos. mas a generosidade não se estendia aos vizinhos do seu país, cuja situação e limites de antes da guerra não lhe agradavam.

Mesmo durante os primeiros dias da invasão alemã, quando por toda o Exército Vermelho estava em retirada e uma derrota catastrófica parecia iminente, a liderança soviética havia sinalizado a determinação em reclamar exigências futuras. Em julho de 1941, por insistência do governo de Churchill, Maisky tinha conduzido negociações em Londres com o líder do governo polonês no exílio, o general Wladyslaw Sikorski, destinadas a forçar aqueles vizinhos hostis a restabelecer relações diplomáticas e cooperar na luta contra a Alemanha. As conversações forneceram as primeiras pistas de como o lado soviético pretendia conquistar seus objetivos territoriais.

                Os poloneses, evidentemente, eram a parte prejudicada desde que Stalin juntou forças com Hitler no desmembramento do seu país, de acordo com o pacto Molotov-Ribbentrop. Depois de invadir a Polônia pelo Leste em setembro de 1939, a União Soviética anexou uma grande parte de território que antes fora a Polônia Oriental e deportou mais de 1,5 milhões de poloneses dessas regiões para prisões e campos de trabalho soviéticos. Entre eles, estava o equivalente a várias divisões de soldados poloneses que as forças soviéticas tinham capturado durante a invasão. Muitos milhares de oficiais tinham de desaparecido sem vestígios - mais de 4 mil corpos foram descobertos em 1943 numa sepultura de massa na floresta de Katin, próxima a Smolensk. As vítimas tinham as mãos amarradas atrás das costas e um tiro na cabeça.

O governo do polonês Sikorski queria dois compromissos claros de Moscou: uma declaração de que a divisão nazissoviética da Polônia era nula e sem efeito – o que teria significado, que ao fim da guerra, o país voltaria às suas fronteiras de: antes de 1939; e a libertação de todos os civis e militares polonês deportados e presos. Isso permitiria a formação de unidades do exército polonês na União Soviética que se juntariam à luta contra os alemães.

Mas durante as conversações em julho de 1941, Maisky indicou imediatamente que a ideia do Kremlin de uma Polônia restaurada não estava de acordo com os objetivos dos poloneses. "Expliquei que, tal como o víamos,o futuro estado polonês deveria ser composto somente de poloneses e dos territórios habitados por poloneses", lembrou ele. Pelo que entendiam os negociadores poloneses, essa formulação significava que o lado soviético pretendia manter o controle sobre uma grande parte dos territórios que tinham anexado em 1939, pois os viam como ucranianos e bielo-russos, e já tinham realizado neles a sua própria versão de limpeza étnica. Se esse fosse o critério para as fronteiras no pós-guerra, a disposição ostensiva dos soviéticos de renunciar ao seu acordo com o regime nazista teria pouca significância prática.

Sikorski sentiu-se compelido a concluir um acordo, apesar de estar muito perturbado pela atitude soviética. Como explicou Jan Ciechanowski, embaixador polonês em Washington, "o governo britânico estava pressionando fortemente o general Sikorski para apressar as conversações com os soviéticos, em vez de pressionar os soviéticos a aceitar as condições justas da Polônia". Isso Churchill admitiu nas suas memórias. Apesar de a Grã-Bretanha ter entrado em guerra por causa da Polônia, ele agora estava particularmente interessado em manter o aliado soviético na luta contra os alemães - e, pelo menos de acordo com alguns relatos, ele ainda suspeitava que Stalin pudesse concluir outro acordo com Hitler se as circunstâncias mudassem outra vez. A questão do futuro territorial da Polônia deveria ser adiada até tempos mais tranquilos” escreveu o primeiro-ministro. “Tínhamos a responsabilidade odiosa de recomendar a ao general Sikorski confiar na boa vontade soviética nos futuros tordos das relações russo-polonesas, e a não insistir naquele momento em nenhuma garantia escrita para o futuro”.

 O acordo, concluído em 30 de julho, não incluiu provisões para a mação de unidades do exército polonês em solo soviético nem a anistia dos poloneses ali presos, e restaurou as relações diplomáticas entre os dois países. Mas, apesar de os tratados germano-soviéticos de 1939 terem sido declarados inválidos, a questão territorial continuou sem solução. Em Washington, o subsecretário de Estado, Sumner Welles, declarou que entendia que o acordo "estava conforme a política dos Estados Unidos de não reconhecimento de territórios tomados por conquista". Na Casa dos Comuns, Eden reiterou a posição do seu governo de que não reconhecia as alterações territoriais de 1939, mas acrescentou que isso "não envolve nenhuma garantia de fronteiras pelo governo de Sua Majestade". Para os poloneses, como expressou Ciechanowski, isso foi "a primeira andorinha na alvorada da nova política britânica de conciliação".


Josif Stalin assinando a declaração comum soviético-polaca na presença do primeiro-ministro polaco, general Władysław Sikorski, 4 de dezembro de 1941.



Menos de duas semanas antes da visita de Eden a Moscou, Sikorski também fez uma viagem tortuosa até a capital soviética, voando de Londres, passando pelo Cairo, Teerã e Kuibyshev. Ao se reunir com Stalin nos dias 3 e 4 de dezembro, ele pediu informações sobre os seus oficiais desaparecidos e sobre a implementação da proclamada anistia de todos os prisioneiros militares poloneses, para que pudessem formar a base de uma nova força de luta. Mas só recebeu negativas e ignorância fingi da quando se discutiu o destino dos oficiais poloneses desaparecidos. "Devem ter fugido em algum lugar", declarou Stalin. Sikorski, contudo, conseguiu a anuência do líder soviético para permitir que os poloneses recém-libertados atravessassem a fronteira para o Irã, onde os britânicos tinham prometido fornecer suprimentos para se equipassem novamente como um exército regular. Sob o comando do general Wladyslaw Anders, mais tarde aqueles soldados lutariam valentemente no norte da África e na tomada do mosteiro de Monte Cassino, durante a campanha italiana de 1944.

Por sua vez, Stalin tentou conduzir Sikorski a uma discussão sobre as fronteiras entre a Polônia e a União Soviética no pós-guerra. "Acredito que seria útil se discutíssemos o assunto. Afinal, as alterações que pretendo sugerir são muito pequenas." O líder polonês insistiu que não tinha direito de discutir nem mesmo a menor alteração das fronteiras “invioláveis” do seu país, e Stalin não insistiu.

Quando se sentou na primeira reunião com Stalin em Moscou, no dia 16 de dezembro, Eden também esperava ter sucesso em evitar essa questão politicamente delicada e as novas suspeitas de que seu governo estaria cedendo exigências soviéticas. Em Washington, Roosevelt tentava tranquilizar os poloneses de que era sensível aos seus interesses, e que respeitava o compromisso que ele e Churchill tinham assumido na carta do Atlântico, proclamada em agosto, durante sua primeira reunião de cúpula no mar. Naquela reunião, os dois tinham prometido que não haveria mudanças territoriais "que não se conformem com os desejos livremente expressos dos povos interessados". Ele insistiu com Churchill para não assumir nenhum compromisso com Stalin relativo aos acordos no pós-guerra. Para Eden, quanto menos se dissesse sobre tudo isso em Moscou, melhor.

Stalin não se dispunha a fazer esse jogo. O líder soviético entregou imediatamente a Eden as minutas de dois tratados - uma para a sua aliança militar durante a guerra, e a outra para tratar dos acordos do pós-guerra. Então chocou os seus convidados ao propor um protocolo secreto para o segundo tratado, que definiria o futuro das fronteiras europeias. "As ideias russas já estavam bem definidas", Eden observou ferozmente mais tarde. "Eles pouco mudaram durante os três anos seguintes, pois seu objetivo era assegurar as garantias físicas mais tangíveis para a futura segurança da Rússia." Havia um exemplo recente desses protocolos secretos na redefinição de fronteiras: o pacto Molotov-Ribbentrop.

Apesar de Stalin não estar planejando extinguir o estado polonês na quela vez, a semelhança não terminava aí. Novamente, a Polônia e os Estados Bálticos figuravam como os primeiros derrotados nesse acordo. Para a Polônia, Stalin propôs que sua fronteira oriental deveria correr ao longo da linha Curzon - a linha do armistício sugerida pelo secretário do exterior britânico na guerra Russo-Polonesa de 1919-1920. As vitórias polonesas durante aquele conflito geraram uma fronteira muito mais a leste, significando que, no período entre guerras, a Polônia controlava uma grande faixa de território que o Kremlin cobiçava. Como resultado do pacto Molotov-Ribbentrop, a União Soviética tomou esse pedaço da Polônia e traçou uma nova fronteira bem próxima da linha Curzon original. Agora Stalin desejava tornar permanente essa situação.

Para compensar a perda de território, Stalin sugeriu que a Polônia deveria receber uma grande parte da região leste da Alemanha. Ele também sugeriu a restauração de um estado austríaco separado, privando a Alemanha da Renânia e possivelmente da Baviera, e a criação de um conselho de vencedores que decidiram o que fazer com a Alemanha derrotada. Stalin queria saber o que Eden pensava da possibilidade de a Alemanha pagar reparações pelos danos que estava infligindo. Quanto aos Estados Bálticos, eles seriam engolidos mais uma vez pelo estado soviético, e as fronteiras soviéticas com a Finlândia e Romênia reverteriam ao que eram antes do ataque alemão. Em suma, ele propunha muitos dos termos que iriam figurar nas discussões das grandes potências em Teerã, em 1943, e em Yalta, em 1945.

Eden sabia como tinha de responder, e tentou fazê-lo com o maior tato possível. Seu governo, disse ele, estava aberto a examinar questões como a organização do controle militar sobre uma Alemanha derrotada, e certamente apoiava uma Áustria independente. Dado o impacto desastroso das reparações na guerra anterior, ele se oporia a qualquer esforço de exigência de reparações ao fim desta. Quanto à questão fundamental das futuras fronteiras, explicou que suas mãos estavam atadas. "Antes mesmo de a Rússia ser atacada, o senhor Roosevelt nos enviou uma mensagem pedindo que não entrássemos em nenhum acordo secreto visando à reorganização da Europa no pós-guerra, sem antes consultá-lo", disse a Stalin.

De fato, John Winant, embaixador americano em Londres, tinha recebido instruções para transmitir uma mensagem do secretário de Estado, Cordell Hull, a Eden pouco antes de sua partida para Moscou. Datada de 5 de dezembro, a mensagem acentuava que as políticas do pós-guerra dos dois países e a União Soviética estavam encapsuladas na Carta do Atlântico, e seria "inadequado" para qualquer um dos dois governos "assumir compromissos relativos a termos específicos do acordo do pós-guerra". Acrescentou: "acima de tudo, não deverá haver acordos secretos"

Tendo em mente esses avisos, Eden continuou a enfatizar a Stalin que a Rússia, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos precisavam estar de acordo com relação às questões principais, e que ele não poderia se comprometer sozinho com nada.

"O que dizer da anexação do protocolo secreto?", perguntou Stalin, recusando-se a desistir.

 Quando Eden reiterou que isso exigiria consultas ao seu governo e a Washington, o líder soviético afirmou concordar, dizendo que uma frente unida era crucial para os esforços dos três países. A discussão passou, então, militar. Apesar de naquele caso também haver adiado a questão territorial, pelo menos naquele momento.

 A reunião seguinte lhe mostrou que estava errado. "Stalin começou a mostrar as garras", observou ele. Aparentemente esquecido das explicações anteriores de Eden, o líder soviético pediu de modo direto o reconhecimento britânico para as fronteiras da Rússia de 1941- em outras palavras, as que tinham sido estabelecidas conforme o pacto Molotov-Ribbentrop.

Era a volta à estaca zero e o que Eden descreveu como uma atmosfera "frigida". Ele explicou mais uma vez que não poderia endossar nada semelhante. Observou que Churchill havia declarado antes que a Grã-Bretanha não reconheceria alterações de fronteiras produzidas por guerra - e que isso ocorrera numa época em que a Alemanha estava avançando e qualquer reconhecimento dessas fronteiras teria sido prejudicial para a Rússia.

"Se diz isso, o senhor poderia dizer amanhã que não reconhece que a Ucrânia faz parte da URSS", Stalin retrucou asperamente.

"Isso é uma compreensão totalmente errônea da posição", respondeu Eden. "Não reconhecemos apenas as alterações das fronteiras de antes da guerra."

Stalin não abandonou o tema, insistindo que a recusa britânica deixaria o seu país como um suplicante. "Isso faz parecer que eu devia vir com o chapéu na mão", disse.

Era o Stalin petulante, que se indignava toda vez que suas exigências - não importando o seu alcance - não eram aceitas de imediato. Insistia e insistia para ver o que poderia conseguir. Era uma prévia do Stalin que os líderes americanos e ingleses tornariam a ver outras vezes, à medida que a guerra avançava. Mas o líder soviético sabia quando aliviara pressão, em especial quando sentia que suas táticas agressivas se mostravam contraproducentes. Ele também compreendia instintivamente que, depois de um ciclo de agressões, poderia ganhar pontos quando parecia mais razoável.

Que foi exatamente como os eventos se desenrolaram com Eden. O secretário do exterior percebeu que também ele teria de demonstrar irritação, se esperava que Stalin agisse mais razoavelmente. Voltando ao hotel depois da ríspida sessão, ele decidiu que poderia falar tranquilamente no carro, pois acreditava que aquele era o único lugar onde suas conversas não seriam monitoradas. Disse aos seus colegas britânicos que, uma vez na suíte do hotel, ele iria expressar sua frustração em voz alta para ser captada pelos equipamentos de escuta. Andando para lá para cá na sala, ele fez exatamente isso, afrontando o comportamento soviético e dizendo que teria sido melhor não ter vindo a Moscou. "Minha conclusão foi que, coma maior boa vontade do mundo, era impossível trabalhar com aquelas pessoas, nem mesmo como parceiros contra um inimigo comum", lembrou ele. "Os outros se juntaram ao coro."

Algumas horas depois, Eden recebeu a primeira indicação de que seus anfitriões soviéticos tentavam desfazer aquela impressão. Antes ele pedira para visitar o front, pois queria ter uma sensação mais direta da situação militar – mas o pedido tinha sido ignorado. Mas agora, Maisky estava ao telefone com a notícia de que ele teria permissão para viajar a Klin, que acabara de ser liberada. No carro com Maisky, ele viu aldeias incendiadas, tanques alemães e russos destruídos na luta, e os mortos russos e alemães espalhados sobre os dois lados da estrada. "Os cadáveres já estavam congelados, geralmente nas poses mais estranhas e incompreensíveis: alguns com os braços abertos, outros de quatro, alguns de pé com neve até a cintura", relembrou Maisky.

Eden se comoveu com a visão de seis jovens prisioneiros alemães - "pouco mais que meninos", segundo ele - que haviam sido capturados no dia anterior e tremiam de frio e de medo. "Estavam muito malvestidos, com sobretudos finos, casacos de lã e sem luvas. Só Deus sabe qual será o destino deles, mas eu posso imaginar: vítimas de Hitler."

Durante a viagem de volta a Moscou, Eden reforçou a mensagem que tentou transmitir quando falou para os microfones da sua suíte. Disse a Maisky que se, como parecia, sua viagem terminasse em fracasso por causa da insistência do lado soviético em impor termos que ele não poderia aceitar, somente os alemães ficariam felizes.

Convencido de que os dois lados não seriam capazes de chegar a um acordo, Eden foi à última reunião com Stalin no dia 20 de dezembro levando a minuta de um comunicado curto. Porém, para surpresa do britânico, o líder soviético estava bem mais cordato do que antes. Apesar de ainda pedir reconhecimento das fronteiras que queria, ele disse que agora entendia que o lado britânico tinha primeiro de consultar-se com os Estados Unidos, e que qualquer tratado poderia esperar. Nesse meio tempo, as relações entre seus dois países continuariam a se desenvolver, acrescentou. Ofereceu também um comunicado, segundo Eden, "mais longo e mais direto que o meu”. O secretário do Exterior lembrou que teve uma sensação de alívio – exatamente o que Stalin queria que ele sentisse.

Por fim, Stalin convidou Eden e seu grupo para um jantar no Kremlin. O convidado de honra notou que a refeição era "quase embaraçosamente suntuosa". Registrou que havia borscht, esturjão, "um leitãozinho infeliz", uma variedade de carnes - e, é claro, vinho, champanhe e vodca. O marechal Timoshenko, Eden acrescentou, "parecia estar bebendo desde antes de nos encontrarmos". Aparentemente embaraçado por Eden ter notado, Stalin lhe perguntou: "os seus generais se embebedam"? Eden respondeu que eles raramente tinham oportunidade para tanto.

De acordo com Maisky, Eden sofreu seu próprio momento embaraçoso. Em certa hora, ele perguntou a Stalin a respeito de uma garrafa grande sobre uma mesa com um líquido amarelado. Era brandy de pimenta, mas Stalin sorriu e lhe disse: "esse é o nosso uísque russo". Quando Eden disse que gostaria de experimentar, o líder soviético Ihe ofereceu um copo grande. Ele tomou um gole grande, ficou vermelho e engasgou, "os olhos quase saltando das órbitas', relembrou Maisky. Stalin então anunciou: "só gente muito forte é capaz de tomar uma bebida tão forte. Hitler está começando a sentir”.

Eden não mencionou esse incidente nas suas memórias, preferiu observar que sua visita terminou com uma "nota amistosa". Mas o banquete o deixou com "uma sensação de irrealidade, que não se deveu à fome nem à penúria no nosso meio, nem aos exércitos alemães, tão próximos que quase ouvíamos a sua artilharia". O que de fato o incomodou foi algo mais profundo. "Naqueles salões dourados a atmosfera era insalubre, porque onde um homem domina, todos os outros temem", observou.

Ele também percebeu que, apesar de conseguir evitar todos os compromissos que Stalin exigia, sua visita representou apenas o primeiro ato de um drama que teria continuação. O líder soviético não se dispunha a desistir das suas ambições territoriais, observou ele no telegrama para Churchill, "e devemos esperar pressão continua quanto a essa questão".


Transcrição: Daniel Moratori (blog Avidanofront.blogspot.com)


Fonte: NAGORSKI, Andrew. O pior de todos os mundos. In: NAGORSKI, Andrew. A Batalha de Moscou. 1ª. ed. : Editora Contexto, 2013. p. 291-301.




sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O massacre de judeus do gueto de Kaunas, Lituânia (1941)

Dois meninos orfãos puxam e empurram uma carroça no gueto de Kovno. Seus pais foram assassinados no início da guerra. Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa11965

Dois guetos com cancelas e arame farpado tinham sido implantados, em julho de 1941, no arruinado distrito de Slobodka, de Kaunas, para os judeus dessa cidade da Lituânia central, um Gueto Grande, que abrigou aproximadamente 27.500 pessoas, e um Gueto Pequeno, ligado por uma ponte de madeira através de uma rua intermediaria, que confinava outras 2.500. Um hospital havia sido montado em diversos edifícios do Gueto Pequeno, com maternidade, alas médicas e cirúrgicas; pacientes com doenças contagiosas foram alojados num edifício separado, de dois andares. Um orfanato também foi instalado no Gueto Pequeno para as várias centenas de crianças judias cujos pais já haviam sido assassinados pelos alemães ou em pogroms.

Em 4 de outubro de 1941, o sabá depois do Yom Kippur, um destacamento do Einsatzkommando 3, de Jäger, tendo à frente o Obersturmführer Joachim Hamann, começou a destruir o Gueto Pequeno. Um rabino, Ephraim Oshry, foi testemunha ocular:

 

De manhã cedo, uns 50 soldados alemães, juntamente com uns 100 colaboradores lituanos muito mais do que víamos habitualmente, o que achamos aterrorizante se amontoaram no Gueto Pequeno e expulsaram as pessoas, sem exceção, de suas casas. Escorraçaram as pessoas da cama, sem mesmo lhes dar a oportunidade de se vestirem. Nas ruas, empurravam os velhos e fracos, as crianças, as mulheres e homens. Usando as coronhas dos fuzis como porretes, espetavam as pessoas a torto e a direito. O sangue jorrava como água. Os judeus foram perseguidos até a praça Sajungos, outrora o mercado de cavalos de Sobodja. Ali, os alemães começaram a dividir os judeus da maneira como sorteiam carneiros para o abate: “Direita! Esquerda!” Morte! Vida!

 

A seleção durou várias horas. Pessoas que apresentavam salvo-condutos de trabalho - apenas cinco mil tinham sido emitidos nos dois guetos inteiros - eram separadas das que não os possuíam. Pacientes foram evacuados das alas médica e cirúrgica. Na ala da maternidade, o jovem a advogado de Kaunas Avraham Tory registrou em seu diário da época: "Os alemães queriam ver os bebês que tinham acabado de nascer. Alcançaram a sacada da janela em que os bebês estavam deitados e ficaram ali, por algum tempo, observando os bebês. Os olhos de um dos alemães se enevoaram. "Nós os deixaremos ficar?” perguntou ao amigo. Os dois saíram do cômodo, deixando as mães e os bebês. Dessa vez eles sobreviveram".

Os órfãos não tiveram tanta sorte, continua Tory:

 

Os alemães, então, passaram a apanhar as crianças do abrigo feito para elas. Das 153 existentes, apenas 12 foram deixadas na casa. Foram somente esquecidas. As enfermeiras também foram tiradas. As crianças que estavam só com roupa de envolver foram levadas para fora e colocadas no chão do pátio de pedra do hospital com os pequeninos rostos voltados para o céu. Soldados do terceiro pelotão da polícia alemã passaram entre elas. Pararam por um momento. Alguns chutaram os bebés com as botas. Os bebês rolaram um pouco para o lado, mas logo em seguida recuperaram a posição de barriga para cima, os rostos voltados para o céu. Foi um raro espetáculo de crueldade e indiferença. Um caminhão pesado se aproximou. Primeiro as crianças e depois as enfermeiras foram lançadas dentro dele. O caminhão foi coberto com uma lona e partiu em direção do Forte IX.

 

Os judeus do Gueto Pequeno que tinham sido selecionados foram formados em coluna de cem e saíram. As pessoas com salvo-condutos de trabalho que haviam sido poupadas foram mandadas pela ponte para o Gueto Grande. William Mishell observou a seleção do Gueto Grande. "Um terrível drama humano estava se desenrolando diante dos olhos dos judeus de ambos os lados da cerca”, recorda. "Era claro: as pessoas do lado ruim estavam sendo levadas para o Forte IX, para uma execução em massa. Todos os de ambos os lados da rua começaram a gritar e os do lado do Gueto Grande procuravam desesperadamente ver de relance os entes queridos que estavam sendo levados embora.” Em seu resumido relatório de 1 de dezembro de 1941, Jäger relacionaria “315 homens judeus, 1.107 mulheres judias, 496 crianças judias” executados em 4 de outubro de 1941 no Forte IX, sustentando absurdamente que a seleção foi uma “ação punitiva pelo fato de um policial alemão ter sido morto a tiros no gueto”.

Mas nesse dia foram mortos mais do que os que marcharam ou foram de caminhão para o Forte IX. Tinha havido sessenta e sete pacientes, médicos e enfermeiras no edifício do hospital de doenças contagiosas, naquela manhã. Um número desconhecido de residentes sãos do Gueto Pequeno havia-se juntado a eles ali, pensando que podia encontrar toda proteção. No começo da Aktion, os alemães tinham trancado os portões do hospital a pacientes e fugitivos da mesma forma. Transferiram para o hospital os pacientes cirúrgicos que tinham estado bastante doentes para comparecer à seleção e depois, pregaram as portas e janelas com tábuas. Puseram dez judeus cavar uma cova no pátio do hospital. Tory descreve o que se seguiu:

 

Defronte ao prédio do hospital, no outro lado da cerca, se situava uma fábrica de casaco de peles chamada Lape. Podia-se ver claramente, desse lugar, o pátio do hospital. Os trabalhadores da fábrica, nesse dia, viram dali os dez judeus cavando a cova; viram como os residentes da casa dos idosos foram descidos para ela, como pacientes foram jogados dentro dela e depois fuzilados em seu interior; viram como criancinhas também foram jogadas ali, assim como pacientes que mal se aguentavam em pé... À uma da tarde, podia-se ver fumaça subindo do edifício do hospital. Mais tarde, as chamas cresceram, saindo dele: o hospital ardeu. O fogo queimou por todo o dia e à noite. Pacientes, equipe e fugitivos, assim, foram queimados vivos.

 

Se não tivessem compreendido antes, as pessoas do gueto de Kaunas sabiam agora que nada as protegia da morte e que outras Aktionen se seguiriam. Começaram a se afastar umas das outras com um gracejo em iídiche, que o rabino Oshry relembra: "Auf Wiedersehn in yenner velt" - "Vejo você no próximo mundo". Mais tarde, em outubro de 1941, começaram a correr de novo, no gueto, rumores de grandes fossos sendo cavados no Forte IX por prisioneiros de guerra russos. Os otimistas especularam que eram armadilhas para tanque que antecipavam um contra-ataque do Exército Vermelho; os realistas sabiam que se destinavam a sepulturas em massa.

Cena de rua no gueto de Kovno. A força policial judaica do gueto de Kovno foi criada por ordem das autoridades de ocupação alemãs em julho de 1941, mesmo antes de o gueto ser selado.
Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1047786

O Dia Negro, como os sobreviventes o chamariam, veio mais para o fim do mês, com uma ordem para todo o mundo no gueto comparecer á praça da Democracia, às seis da manhã de 28 de outubro de 1941, ou ser fuzilado. As pessoas tinham de se apresentar com suas famílias conforme suas atribuições profissionais: o conselho do gueto com um emblema; os trabalhadores que construíam uma base aérea para a Luftwaffe fora de Kaunas com outro; curtidores de couro, construtores de estrada, peleteiros, bombeiros, funileiros, cada um tinha de ser identificado como tal. Mishell trabalhava para conselho judeu e seu cunhado trabalhava na guarnição da base aérea, e tão crucial a família julgou a decisão sobre o emblema a ser ostentado que ficaram em claro a noite inteira debatendo-a, com a conclusão final de as pessoas que trabalhavam para os militares alemães seriam consideradas mais valiosas, recaindo pois a escolha na posição da base aérea. “Ninguém do gueto pregou um olho na noite de 27 de outubro, registra Tory. "Muitos choraram amargamente, muitos outros recitaram salmos. Houve também pessoas que fizeram o oposto: resolveram ter um bom momento, festejar e se fartar de comida, torrar toda a sua provisão. Moradores cujos apartamentos estavam abastecidos de vinhos e bebida beberam tudo o que puderam e até convidaram os vizinhos e amigos para essa macabra festa, “a fim de não deixar nada para os alemães”.

Como foi ordenado, vinte e oito mil pessoas deixaram suas portas destrancadas,fixaram avisos na porta se estivesse dentro alguém doente demais para se deslocar e caminharam pelas ruas do gueto nessa manhã, “muito fria”, lembra Mishell, “um típico dia de outono, com fina camada de neve cobrindo o terreno. Estava ainda escuro e o ar se mostrava extremamente úmido. As últimas estrelas visíveis desapareceram gradualmente, enquanto a multidão começava a crescer. Podiam-se ver mães com os filhos nos braços, pessoas idosas que mal conseguiam andar, crianças pequenas segurando a mão das mães, adultos dando apoio aos pais mais velhos ou aos avós, e até inválidos apoiados em bengalas. Algumas pessoas incapazes de caminhar eram transportadas em macas”. Tory descreve isso gravemente, como "uma procissão de gente enlutada, sofrendo consigo mesma”.

Um grupo de meninos segurando uma criança pequena no gueto de Kovno. 
Fonte:https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa11952

Todo o mundo ficou esperando por três horas, enquanto a aurora finalmente irrompia. Tory viu, então, que “a cerca do gueto foi rodeada de metralhadoras e por um pesado destacamento de policiais alemães armados, comandados pelo capitão [Alfred] Tornbaum. Eles tinham também, à disposição, batalhões de guerrilheiros lituanos armados. Uma multidão de espectadores lituanos curiosos havia-se reunido nas colinas que dominavam o gueto. Acompanharam os acontecimentos, participando na praça com um grande interesse não isento de prazer, e não saíram dali por muitas horas”. O robusto e brutal SS-Hauptscharführer Helmut Rauca chegou às nove horas com o representante chefe da Gestapo, capitão Heinrich Schmitz, Tornbaum e o capitão SA Fritz Jordan.

Kauca, com sua farda verde-acinzentada, carregando um bastão, se colocou numa elevação num extremo da praça e a seleção começou. De luvas pretas, apontava com um dedo a esquerda e a direita, dirigindo grupos e famílias. Por algum tempo, não ficou claro que lado significava a vida e que lado a morte, e as pessoas às vezes pediam para mudar. Se a mudança era para a direita, diz Tory, “rindo sarcasticamente, Rauca a consentia”. Logo em seguida, como os doentes e idosos se acumularam no lado direito, o lado que significava a morte se tornou claro. “De quando em quando, Rauca se regalava com um sanduíche... ou apreciava um cigarro, realizando todo tempo seu trabalho perverso sem interrupção”. Às vezes, um auxiliar trazia um pedaço de papel que mostrava uma contagem dos mandados para a direita - eles eram rapidamente deslocados para o vazio Gueto Pequeno - o que indicava que Rauca tinha uma cota a preencher. Pessoas morriam à espera dessa escolha na praça. Como o dia passava e as contagens lhe mostrava pouco de sua cota, Rauca escolhia tanto pela aparência como pelo salvo-conduto de trabalho ou especialidade. Todos os quinhentos trabalhadores do turno da noite da base aérea que, atordoados e exaustos, tinham vindo diretamente do trabalho para a praça da Democracia ele mandava para a direita, mas os bem-dispostos trabalhadores do expediente diurno ele mandava para a esquerda.

Soldados alemães se preparam para um ataque no gueto de Kovno, enquanto alguns moradores judeus observam.
Fonte: https://collections.ushmm.org/search/catalog/pa1047792

A seleção se prolongou pelo dia todo. “Estava começando a escurecer”, escreve Tory, “e ainda milhares de pessoas permaneciam de pé na praça. O capitão Jordan então abriu outro local de seleção. Foi auxiliado pelo capitão Tornbaum”. A polícia do gueto judeu tentou deixar passar pessoas de um lado para o outro e, às vezes, conseguiu. Um deles salvou desse modo o cunhado de Michel, sua mulher e filho.

Estava escuro quando os alemães concluíram a seleção. Cerca de dez mil pessoas tinham sido transferidas para o Gueto Pequeno, onde se instalaram nos frios edifícios para passar a noite. As outras voltaram para a casa, diz Tory, “famintas, sedentas, oprimidas e desalentadas... a maioria enviuvada ou órfã, separada de um pai, de uma mãe, de filhos, irmão ou irmã, avô ou avó, tio ou tia. Um profundo pesar desabou sobre o gueto. Em cada casa, passara a haver cômodos vazios, camas desocupadas e os pertences dos que não haviam voltados das seleções. Um terço da população do gueto fora abatida. Todas as pessoas doentes que haviam permanecido em suas casas de manhã haviam desaparecido. Haviam sido transferidas para o Forte IX durante o dia”.

Na manhã seguinte, foi a vez dos dez mil. Um adolescente fugiu da carnificina resultante e voltou para Kaunas a fim de informar o conselho judaico. O resumo de Tory reflete o relato de testemunha ocular do rapaz:


A procissão, que somava umas 10.000 pessoas, e proveniente do Gueto Pequeno para o Forte IX, durou do amanhecer ao meio-dia. As pessoas idosas, e as que estavam doentes, sucumbiram na beira da estrada e morreram. Tiros de advertência eram dados incessantemente ao longo de todo o caminho e em torno do Gueto Grande. Milhares de curiosos lituanos se juntaram nos dois lados da estrada para assistir ao espetáculo, até a última das vítimas ser engolidas pelo Forte IX.

No forte, as desventuradas pessoas foram imediatamente atacadas pelos matadores lituanos, que as despojaram de todos os objetos de valor - brincos, braceletes de ouro. Obrigaram-nas a se despir, empurraram-nas para os fossos que tinham sido antecipadamente preparados e fizeram o fogo, para dentro do fosso, com metralhadoras ali previamente colocadas. Os assassinos não tinham tempo de atirar em todo o mundo de cada lote antes de o próximo chegar.

Era-lhes concedido o mesmo tratamento dos que os tivessem precedido. Eram empurrados para dentro do fosso, sobre o topo dos mortos, dos agonizantes e dos ainda vivos do grupo anterior. Assim continuou, lote após lote, até os 10.000 homens, mulheres e crianças terem sido chacinados.


Jader listou o massacre de 29 de outubro de 1941, no Forte IX, como de 2.007 homens judeus, 2.920 mulheres judias, 4.273 crianças judias, justificando-o como “remoção do gueto de judeus excedentes”.

Enquanto os judeus de Kaunas estavam sendo submetidos à seleção e assassinados aos lotes no Forte IX, Himmler estava pretendendo desfrutar de uma semana em Schönhof, a residência de caça do ministro alemão das Relações Exteriores, Joachim von Ribenntrop. O ministro das Relações Exteriores italiano, conde Galeazzo Ciano, era o hóspede de honra, e o massagista de Himmler, Felix Kersten, também era hóspede. Em 26 de outubro de 1941, o grupo abateu 2.400 faisões, 260 lebres, 20 gralhas e um corço. "O conde Ciano, sozinho, derrubou 620 faisões", escreve Kersten: “foi o campeão. Ribbentrop, 410 faisões, Himmler, somente 95. Himmler disse a Kersten que só se havia juntado à caçada porque “o Führer desejara expressamente que ele o fizesse”. Murmurou, sobre o sucesso de Ciano: “Quisera que os italianos na África fossem tão bons atiradores.. Onde não há perigo, os italianos são heróis”. Depois do jantar dessa noite, Ciano disse a Kersten em particular: “A guerra durará muito tempo”. Kersten acrescentou: “e Ciano observou que nós éramos os únicos a partilhar essa opinião. Aqui em Schönhof, todo o mundo está dizendo que a guerra acabará logo”.

No fim da caçada de Schönhof, na noite de 28-29 de outubro de 1941, enquanto os dez mil de Kaunas estavam fazendo suas camas nos frios edifícios do Gueto Pequeno, sabendo o que a manhã lhes traria, Kersten falou com Himmler sobrea caça enquanto lhe fazia uma massagem:


Eu disse que a adorava e que nunca me sentia tão bem como na caça de tocaia. Tornava-me uma pessoa totalmente diferente, quando estava ao ar livre, espreitando o cervo horas a fio, e continuava a colher o benefício desses dias de caça por um considerável tempo depois. 

Himmler respondeu que era certamente a melhor parte da caça, mas o objetivo real da caça de tocaia, dar um tiro num desventurado cervo, contrariava a sua natureza. “Como você pode encontrar qualquer prazer, sr. Kersten, atirando por trás de um esconderijo em pobres criaturas que pastam à beira de um bosque, inocentes, indefesas e confiantes? Pensando bem, é puro assassinato”.


TRANSCRIÇÃO: Daniel Moratori
FONTE: RHODES, Richard. Mestres da Morte: A invenção do Holocausto pela SS Nazista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. 210-215 p.